domingo, 18 de março de 2012

O renascer...


D. Manjericão será o nome da minha nova personagem, que assim como ele quando está triste, cabisbaixo, basta uma água nova e ele logo se levanta exalando seu delicioso odor.
D. Manjericão é uma dessas lutadoras, que cedo madruga, já que trabalha em uma feira da madrugada, conhecida aqui em São Paulo,  seus dias frenéticos começam cedo e terminam tarde, pois ela compra o material, manda fazer e ainda revende o produto. E assim os anos passaram-se junto ao marido, por escolha própria não quis filhos, familiares e amigos.
A conheci numa consulta de rotina, vinda à laço por sua amiga, e com ela trazia uma mamografia, sugestiva de câncer de mama. A examinei, nada palpável mas a orientei a fazer a biópsia e ir ao mastologista. Por descuido do destino ela passou por uma masto um pouco pretensiosa e desatenciosa. Daí é que a luta começou.
D. Manjericão negou-se a continuar o tratamento, e o tempo impiedoso foi passando e com ele novas células crescendo demasiadamente e logo era perceptível o nódulo. Após e somente após um sobrinho médico, que mora em Brasília, ter acesso ao caso e “obrigar” D. Manjericão a se tratar é que a mesma reiniciou o tratamento.
Árduo, duro, difícil... para nós, porque D. Manjericão saía da quimioterapia cambaleando e ia para feira, para as compras e revendas... ela renascia conforme a doença morria.
Foram feitas muitas sessões de quimioterapia e muitas outras de radioterapia, até que o nódulo tivesse diminuído e fosse possível operar. A operação foi um sucesso, mas a mutilação do corpo de mulher foi inevitável, mastectomia radical.
Choro por uma assimetria? Jamais, ela se achava linda, ou melhor viva. Assustados os médicos não entendiam aquela força de viver, aquela luz que nascia a cada dia e, a presentearam com uma reconstrução da mama. Hoje D. Manjericão tem as duas mamas recauchutadas e durinhas, como diz ela. Mas ainda como ela: Isso é bonito, mas não tinha importância, eu gostava de mim daquele jeito, e as pessoas ao meu lado não vão me amar mais por isso. Afinal o câncer é meu, meu marido não vai me amar mais porque tenho câncer, eu tenho que lutar e viver, porque a vida de todos a minha volta continua... E essas palavras e aqueles olhos de brilho único bateram em mim como um golpe, acorda menina!!!
Como diante de situações tão adversas, tão insanas sentimentalmente dizendo, uma mulher faz nascer força, luz e paz interior para vencer uma luta tão desigual? A resposta ela mesma me deu: Dra eu sempre fiz o bem, ajudei a quem pude porque as pessoas, a vida faria diferente comigo?
Dedico com carinho essas breves palavras a essa mulher incrível, de humor inatingível, que tive o privilégio de conhecer.

domingo, 22 de janeiro de 2012

O nascimento de um lindo jardim

Uma semente foi lançada ao vento e aos poucos lindos passarinhos foram a espalhando e assim aconteceu um lindo jardim.
O final do ano se aproximava e com isso a notória vontade de fazer a diferença mais uma vez brotava, e transformava essa energia em ferramentas para um bem maior. Foi assim que nasceu a ideia de uma festa para crianças carentes com direito a comida, roupa para a ceia e brinquedos, muitos brinquedos...
Por semanas foram apenas sugestões, e à partir daí uma corrida incessante atrás de patrocínio e pessoas dispostas a doar um pouquinho de si para o outro.
E o que era apenas uma vontade, cresceu e conseguimos doações fantásticas de alimentos e mais de 150 anjos, quase todos anônimos, que além de doarem roupas, sapatos e brinquedos doaram um pouquinho do seu carinho, do seu tempo e do seu amor, para que crianças carentes conhecessem o que é o natal, ou melhor, o espírito do natal.
E após 2 à 3 meses de empenho foi realizada a primeira festa de natal para a comunidade da unidade em que trabalho, momento em que não foi distribuído apenas alimento ou roupas, foi um momento mágico de entrega de carinho, compreensão e cumplicidade com o próximo. Muitos foram os colaboradores, voluntários e patrocinadores, mas acima de tudo isso existia solidariedade, entrega ao fazer bem.
Cada criança recebeu uma sacola contendo roupa, calçado e brinquedo, além de brincadeiras e refeição.  E cada olhar e sorriso valeram cada caminhar, cada não e cada sim.
São frases do tipo: Isso tudo é para mim tia? Ou... Meu deus tia tem até papai noel dando brinquedo? Ou ainda imagens como: crianças especiais com medo do papai noel ou correndo em direção a ele, ou o encontro de mães madrinhas com mães apadrinhadas recebendo os presentes com lágrimas e gratidão. Momentos que fazem a diferença, uma pausa na existência.
Pequenos gestos fazem com que a alma humana torne-se mais leve, real, serena... e o olhar da criança e/ou mãe contemplada vale qualquer mal dizer, qualquer não rude. É uma alegria e bem estar indescritível.

Agradeço aqui a todos os “anjos”, a todos os patrocinadores, a todos os colaboradores da nossa unidade e a todos os voluntários da comunidade que acreditaram no nosso trabalho e fizeram esse sonho tornar-se realidade. E ainda um obrigada especial a cada agente comunitária (lindos passarinhos), sem as quais nada disso seria possível.

E assim fez-se florir o mais belo jardim... 


quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

A poda da flor


Há alguns meses tive o desprazer de conhecer a maldade humana, em um ambiente em que as pessoas que ali vão procuram amparo e cura,  do corpo é verdade, mas causada na maioria das vezes por feridas da alma.
Todas ou a maioria das pessoas quando procuram atendimento médico, em uma unidade de saúde, seja ela qual for, hospitais ou postos, acreditam encontrar pessoas boas e que estão dispostas a ajudar como profissão, no entanto isso não é verdade, infelizmente.
À procura por uma profissão de cuidado é algo supremo e mágico, no entanto os seres humanos com o passar do tempo esquecem dessa escolha, dessa chama, e permitem que sentimentos mesquinhos tais como inveja, ciúmes e dúvidas transformem essa vontade de ser útil, na vontade de machucar e ferir o próximo.
Fui golpeada por alguém que sempre pareceu ser amigo, gentil e zeloso pela sua profissão, engano meu? Talvez, mas o maior engano é enganar a si mesmo. Abalada e triste fui convidada a me retirar do meu próprio jardim, algo que conquistei, amei e me dediquei desde o primeiro momento... destruído e ferido por mentiras e mal caratismo.
Um tempo curto se passou e pude voltar a minha “casa”, quebrada e remendada. Aos poucos tenho tentado reconstruir cada tijolinho novamente. Com a ajuda de quem realmente se importa.
Agradeço aqueles que sempre me ajudaram a construir cada peça, cada pedaço e ainda mais aqueles que continuam a construir uma equipe, uma saúde melhor apesar do desgaste.
Deixo aqui a minha indignação com os serviços de saúde que a cada dia procuram mais números, mais metas, mais dinheiro e se esquecem da pessoa, da alma, de cada um que entra no serviço, que vai a procura de um afago, carinho, escuta, cura. E ainda aos profissionais que procuram a essas profissões somente por dinheiro...
Quantas pessoas se entregam ao voluntariado para se encontrarem ou sentir-se verdadeiramente úteis, à procura de algo maior, a essência, o transcendental... E nós temos o prazer de a cada dia poder sentir isso, como trabalho, como profissão, como dom...
À todos aqueles que mantém a alegria e verdade na escolha.


Meu jardim - Vander Lee

"Tô relendo minha lida, minha alma, meus amores
Tô revendo minha vida, minha luta, meus valores
Refazendo minhas forças, minhas fontes, meus favores
Tô regando minhas folhas, minhas faces, minhas flores

Tô limpando minha casa, minha cama, meu quartinho
Tô soprando minha brasa, minha brisa, meu anjinho
Tô bebendo minhas culpas, meu veneno, meu vinho
Escrevendo minhas cartas, meu começo, meu caminho

Estou podando meu jardim
Estou cuidando bem de mim"

domingo, 7 de agosto de 2011

O Cravo brigou com a Rosa? O Cravo continua a amar a Rosa? O Cravo e a Rosa vivem, compartilham, amam...

Dona Rosa e Sr. Cravo se apaixonaram muito cedo, eram adolescentes de famílias humildes e muito tradicionais, e logo correram os preparativos e o casório.
Casaram-se e tiveram uma vida feliz, Sr. Cravo trabalhava arduamente dia após dia, e D. Rosa cuidava da casa, logo engravidaram e nasceu o primogênito e dois anos após nascia o segundo filho.
Os meninos eram a vida da casa, da família, de seus pais...
O tempo passou, as crianças cresceram, e o casal foi mostrando os primeiros sintomas da velhice. Sr. Cravo diabético de longa data, iniciou sintomas claros de demência que aterrorizava a família: Como um homem trabalhador, tão inteligente pode ficar assim? A indignação foi tanta, que a aceitação ficou pequena. No entanto a cada dia os sinais ficavam mais claros e o diagnóstico evidente, Doença de Alzheimer.
Apesar dos esforços, a doença degenerativa e progressiva não se abalou e aos poucos foi tomando o cérebro do Sr. Cravo, antes tão ávido por conhecimento.
Paralelamente D. Rosa foi apresentando tremores, antes diagnosticado como essencial, mas que aos poucos tornaram-se frequentes e o diagnóstico foi preciso, Doença de Parkinson.
- Meu Deus o que será de nós? Nossos pais estão envelhecendo, estão doentes, estão indo embora... O que fazer? Como cuidar? Como continuar a amar? Eles mal nos reconhecem... Quem já ouviu falar de um casal um com Alzheimer e outro com Parkinson?
Neste contexto conheci essa família, D. Rosa e Sr. Cravo moram sozinhos, na casa que sempre foi deles. E os filhos, por perto.
D. Rosa é uma dessas avózinhas amáveis, que te cativam pelo olhar. Serena e tranquila sofre apenas com a “ausência” do marido. Sr. Cravo traz no rosto marcas de uma vida difícil, áspero e amargo em um primeiro contato, que aos poucos se transforma em um homem carinhoso, capaz de contar agradáveis estórias e vitórias, e no entanto não se lembrar do próprio banho.
Eu, no meu humilde olhar não entendia como eles podiam viver daquela maneira, mas viviam, e de acordo com as suas limitações, bem. Na primeira visita a cuidadora  causava ciúmes e estranheza  a D. Rosa, isso mesmo ciúmes, D. Rosa tinha ciúmes da cuidadora com o marido, e isso foi criando circunstâncias de tremendo descontrole físico, psíquico e metabólico para ambos. Mas logo a cuidadora foi substituída por uma de mais agrado de D. Rosa.
A nova cuidadora, uma flor especial, conseguiu trazer harmonia e tranquilidade, apesar do Sr. Cravo continuar brigando e achando que é D. Rosa quem deve cuidar dele, ele a aceita melhor.
Às vezes eles caem, se machucam, aumentam a pressão, aumentam a diabetes, choram, regridem, progridem, amam, sentem raiva, mas vivem... e são amados, sem restrições, sem porquês, sem pena... simplesmente vivem e são amados...

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Rubem Alves

“Sou o intervalo entre o meu desejo e aquilo que os desejos dos outros fizeram de mim…” Sou esse intervalo, esse vazio – de um lado, o meu desejo (onde foi que o perdi?); do outro lado, o desejo dos outros que esperam coisas de mim. Não, não são os inimigos que me impõem o intervalo.  Os desejos que me pegam são os desejos das pessoas que amo – anzóis na carne. Como tenho raiva do Antoine de Saint-Exupéry – “tornamo-nos eternamente responsáveis por aqueles que cativamos...” Mas isso não é terrível? Ser responsável por tanta gente? Cristo, por amar demais, terminou na cruz. Embora não saibamos, o amor também mata.
Então, abandonar o amor? Não. Mas é preciso escolher. Porque o tempo foge. Não há tempo para tudo. Não poderei escutar todas as músicas que desejo, não poderei ler todos os livros que desejo, não poderei abraçar todas as pessoas que desejo. É necessário aprender a arte de “abrir mão” - a fim de nos dedicarmos àquilo que é essencial.

Tecnólogos em Medicina

Há aproximadamente dois anos sou preceptora de internos de medicina na área prática da saúde pública, em estratégia de saúde da família. Quando iniciei no projeto era tudo novo e motivador, pelo fato de ensinar práticas diárias e rotineiras a pessoas ávidas por conhecimento, o saber, o transformar-se em médicos. Como esperado foi intenso, eu estudava bastante para não deixar dúvidas, aplicava casos inventados e reais, listas e mais listas de medicamentos, indicações e contra-indicações, e sempre tentando ressaltar o lado “humano”, diante a uma realidade pobre e insalubre. E como retribuição eu recebia o ar encantado, os olhos da descoberta, e milhares de perguntas e mais perguntas e mais pesquisas e trabalhos científicos que me acrescentaram em muito. Mas o tempo foi passando e a avidez pelo conhecimento foi cada vez mais diminuindo, o que muito me entristece.
Alguns procuram o conhecimento, estudam, se dedicam, mas nem se lembram quem é o doente, ou o que ele representa na sua família e comunidade, “é só um pobre que serve pra gente estudar”, pasmem, mas já ouvi isto. Outros não procuram nem o conhecimento e nem o interesse ao próximo, talvez tenham a falsa impressão de que a medicina traga riqueza. Triste.
Essa semana tive uma conversa/aula com um psiquiatra, e discutíamos sobre a saúde pública nesse país, e em um momento eu disse: Nossa a saúde mental deste país está no limbo, fui rebatida prontamente: não, está no inferno. Em outro momento eu disse: mas pediatra e psiquiatra são espécies em extinção, fui fervorosamente rebatida outra vez: não, médico é uma espécie em extinção, porque os “médicos” que se formam hoje em dia não se interessam nem pela doença e nem pelo doente, talvez sejam tecnólogos em medicina. Pensei... Repensei... E cá estou dividindo essa angústia...
Meu tempo de trabalho não é muito, mas percebo que já se parece muito com a de médicos mais experientes, de que as faculdades parecem estar preocupadas apenas com o dinheiro da mensalidade, e o pior, formam profissionais com esse mesmo ideal.
Lembro-me como a medicina era um sonho para mim e para muitos dos meus amigos no colégio e cursinho. Lutamos e estudamos muito, alguns conseguiram, outros ficaram pelo caminho. E tentamos desde então fazer o melhor, mesmo que com um “jeitinho brasileiro” de tentar de tudo com pouco, às vezes muito pouco.
Sei e sinto na pele a escassez de materiais, equipamentos e medicamentos, locais de trabalho sem ventilação, salário baixo, e falta de pessoal. E há vezes em que realmente penso em sumir e abandonar tudo... Mas aí me lembro do todas as carinhas que consegui ajudar, algumas realidades que pude elucidar uma melhora, bebezinhos já crescidos que dividem os primeiros passos comigo, crianças que voltaram à escola, raros adolescentes que estão na faculdade... Enfim sinto e vejo o quanto vale à pena. Sim, a medicina traz riqueza, grandeza, mas de alma e não de dinheiro.
Queridos colegas e futuros colegas, não desistam da essência que levaram vocês a escolher essa profissão, não vamos deixar que a correria/capitalismo destrua o nosso lado sensível, o poder e o dever de enxergar o outro.
Dedico aos meus amigos médicos e primeiros internos (Dani e Pedro) que fazem a diferença onde quer que estejam, pelo carinho, pela vontade, pelo caráter, pelo ser médico.

domingo, 29 de maio de 2011

Gibran Kahlil

"Cada um que passa em nossa vida, passa sozinho, pois cada pessoa é única e nenhuma substitui a outra. Cada um que passa em nossa vida, passa sozinho, mas quando parte, nunca vai só nem nos deixa a sós. Leva um pouco de nós, deixa um pouco de si mesmo. Há os que levam muito, mas há os que não levam nada”. 

Bolo de aniversário

Essa estória nasceu de forma inesperada... 
Com um bolo de aniversário...
Julia era mais uma das tantas mulheres que iniciam o pré-natal na unidade de saúde. Já na terceira gestação preocupava-se com o fato de mais uma cesárea e mais um filho, e o que tudo isso representa na vida de uma mulher. Aflita, por muitas vezes quis mudar de médico e até agrediu verbalmente alguns funcionários. No entanto, com jeitinho e cautela fomos conversando, brincando, crescendo e o vínculo foi novamente se refazendo.  Por volta dos quatro meses de gestação Julia já estava mais feliz e contente com os serviços prestados... O pré-natal corria bem, a evolução do feto e das pessoas a sua volta caminhavam com alegria e afeto.
Com a proximidade do fim da gestação, Julia foi encaminhada ao PA Obstétrico para que fosse realizada/agendada a cesárea, mas por motivos alheios a nossa vontade a mesma foi mal tratada e mal avaliada... E com isso começamos uma corrida contra o tempo: uma vaga para um parto cesáreo com laqueadura se possível...  Conversas tensas e mal resolvidas aconteceram por dias, até que após muita insistência fomos agraciados com uma vaga em um município vizinho. Mas como pode ser? Como vamos encaminhar para outra cidade? Isso é um absurdo, em uma cidade deste tamanho? Enfim, foi assim... E tudo correu bem, Julio nasceu forte e com uma energia tranqüila, apesar da correria...
Julia era só sorriso e orgulho quando levou o lindo garoto para conhecermos e agradecer o nosso trabalho... E naquele instante toda a loucura pela vaga, os insultos superiores, palavras mal ditas anteriormente, ficaram para trás e tudo tinha valido à pena.
O bolo de aniversário?
Essa semana Julio fez um ano de vida e quem ganhou o presente fomos nós, ganhamos uma festa de aniversário na unidade em agradecimento ao nosso envolvimento/trabalho do pré-natal até hoje, na puericultura...
Alguns pequenos gestos marcam a nossa estória, profissional e pessoal, e esperamos que o nosso trabalho também possa marcar de forma positiva a vida dessas pessoas...

sábado, 19 de fevereiro de 2011